O que é marxismo? (Parte II) — A essência do marxismo.

Crítica Roedora dos Ratos
7 min readMay 23, 2021

A última parte desta primeira série sobre a origem e significado do marxismo foi recentemente publicada. Desta vez, abordamos as visões de Karl Korsch e Nildo Viana, segundo os quais é preciso aplicar o materialismo histórico ao próprio marxismo, desvelando a sua essência.

O segundo vídeo se encontra no ar no nosso canal no youtube no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=-xalFijG560&t=93s

Abaixo você confere o texto na íntegra.

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No vídeo anterior, concluímos com a afirmação de que é necessário explicar o marxismo a partir do materialismo histórico-dialético. Isto significa que o marxismo deve ser explicado de acordo com a sua essência, a sua determinação fundamental. A existência do fenômeno é o concreto, o que existe efetivamente e pode ser reconstituído em suas múltiplas determinações através de uma análise que visa descobri-las. A descoberta possibilita formular conceitos que expressam essas determinações e a análise deve ser realizada pela abstração dialética, possibilitando compreender o processo de constituição de um determinado fenômeno. A análise da essência, portanto, não pode estar desligada das outras determinações.

Na análise do marxismo, utilizamos o materialismo histórico para não nos iludir com o dado empírico, o discurso, entre outros procedimentos equivocados que não revelam a essência do marxismo. Para percorrer esse caminho de explicação do marxismo, recorremos à reflexão que Korsch realizou em sua obra Marxismo e Filosofia. Este teórico alemão inicia sua reflexão sobre a existência do marxismo, mostrando que este possuiu três fases em seu momento inicial:

“A teoria marxista percorreu, desde o seu nascimento, três grandes períodos, e (…) sua relação com o desenvolvimento real da sociedade tornou necessárias estas três etapas. A primeira começa por volta de 1843 (na história das ideias, com a Crítica da filosofia do direito de Hegel) e chega ao fim com a Revolução de 1848 (na história das ideias, com o Manifesto Comunista). A segunda se inicia com a sangrenta repressão ao proletariado parisiense em junho de 1848, seguida pela liquidação de todas as organizações e tendências emancipadoras da classe operária, (…) até a virada do século porque não se trata, aqui, da história do proletariado em geral, mas da evolução interna da teoria de Marx em suas relações com a história do proletariado (…). A terceira vem dessa época aos nossos dias e se estende até um futuro ainda indeterminado.” (KORSCH, 2008, p. 37–38, grifos nossos).

Assim, todas as três fases iniciais do marxismo estiveram vinculadas à ascensão e declínio da luta operária. O fundamental na tese de Korsch é a sua explicação do marxismo em consonância com a realidade, vinculando a história das ideias com a história real. Em seguida, Korsch conclui sua reflexão com uma análise da essência do marxismo, afirmando que este é a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. Temos, portanto, a fundamentação histórica do marxismo como teoria revolucionária. No entanto, cabe ainda explicar teoricamente o significado de “expressão teórica”, ou seja, o que é exatamente uma teoria, e, ao lado disso, dizer o que é o “movimento revolucionário do proletariado”, o que pressupõe uma explicação do que é o proletariado revolucionário.

Iniciando uma discussão sobre teoria, Nildo Viana (2014) afirma que a teoria é uma forma de consciência que emerge em um determinado contexto histórico, tendo como antecedente outras formas de consciência ainda embrionárias, como as utopias, doutrinas etc. No decorrer do desenvolvimento da radicalização das lutas operárias, esta classe cria diversas manifestações culturais e uma delas é o marxismo. O marxismo é, portanto, produto da luta operária e Marx foi o primeiro que conseguiu realizar a síntese e desenvolvimento da teoria em alto grau de complexidade.

Dessa maneira, a teoria deve ser compreendida como consciência correta da realidade. Ela possui um alto grau de complexidade e desenvolvimento que gera um universo conceitual que expressa e explica a realidade. O seu objetivo é a transformação social, o que cria um vínculo indissolúvel entre a teoria e a perspectiva do proletariado. O mérito inicial do desenvolvimento dessa produção intelectual revolucionária e complexa coube a Karl Marx, devido aos seus estudos, valores, projetos, mentalidade, entre outros elementos que permitiram a esse autor a elaboração de uma teoria da sociedade que explicasse o seu processo de transformação e sua tendência para a autoemancipação humana. Diferentemente das ideologias burguesas, nas quais a ideologia da neutralidade é um dos seus pilares, a teoria é um saber interessado que expressa necessidades, valores e sentimentos, pois a sua perspectiva é do proletariado, classe interessada na emancipação humana. Isto significa que ela também é práxis, ou seja, atividade mental teleológica e consciente. A finalidade é a transformação radical do conjunto das relações sociais, a autogestão social, e sua intenção é expressar a perspectiva do proletariado, que é condição para uma consciência correta da realidade.

Em nossa exposição até aqui, comentamos várias vezes sobre a teoria expressar a “movimento revolucionário do proletariado” ou a “perspectiva do proletariado”, ou seja, expressar uma classe social. Por isso, é necessário agora explicar o que é exatamente essa classe. De forma resumida, podemos afirmar que o proletariado é uma classe social que emerge no capitalismo, caracterizando-se por ser a classe produtora de mais-valor. É uma classe que existe através da relação-capital, ou seja, em relação com a classe capitalista. A relação-capital é produção (proletariado) e apropriação (burguesia) do mais-valor produzido no conjunto das relações de produção capitalistas, formando assim as duas classes fundamentais da sociedade burguesa. A produção de mais-valor é aquela que produz bens materiais nos quais os trabalhadores produtivos, proletários (operários fabris, agrícolas, da construção civil, etc.), transformam a natureza e geram mais valor ao produzirem novas mercadorias.

Após essa definição do que entendemos por teoria e proletariado, podemos retomar novamente a definição de marxismo em Korsch, compreendendo agora o que significa cada conceito presente na expressão “o marxismo expressa teoricamente os interesses do movimento revolucionário do proletariado”. No entanto, nosso amigo ouvinte poderia chegar à seguinte pergunta: o marxismo expressa teoricamente determinados indivíduos proletários ou setores do proletariado? Em certa passagem do Manifesto Comunista, Marx fornece esclarecimentos a esse respeito:

“Os comunistas não têm interesses distintos dos interesses do conjunto do proletariado” (MARX & ENGELS, 1999, p. 79, grifos nossos).

A frase lapidar de Marx significa que os comunistas devem expressar a totalidade da classe proletária, fazendo valer os seus interesses como classe. Não interessa o que é o proletariado momentaneamente, nem os indivíduos proletários, mas o que ele deve ser de acordo com o seu ser de classe. O ser de classe do proletariado já foi definido: ele é a classe que produz mais-valor. Aqui queremos dizer que o proletariado está definido conforme a sua posição nas relações de produção capitalistas e nesta situação ele está envolvido na relação com a classe capitalista, o que significa trabalho alienado, exploração, dominação e miséria. Portanto, o ser-de-classe do proletariado corresponde a uma classe determinada pelo capital, ou “classe em si”. Em seu dia a dia, o proletariado como classe determinada está submetido ao capital.

É no momento que o proletariado luta, rompe com o capital e busca destruí-lo, que, por sua vez, ele passa a lutar pela sua autodestruição e pela abolição das classes em geral. Quando o proletariado deixa de existir, surge em seu lugar uma sociedade de produtores, um “autogoverno de produtores”, e não mais de “operários”. Dessa maneira, o marxismo expressa o proletariado como classe autodeterminada, ou “classe para si”. Neste processo de passagem de classe determinada para autodeterminada, o proletariado cria sua associação, sua auto-organização de classe, para defender seus interesses de classe revolucionária. Todo esse processo é uma totalidade, que envolve auto-organização (associação) e autoeducação (autoformação), forma de organização da classe operária em sua totalidade (o “conjunto do proletariado”) e não apenas grupos ou partes do mesmo, embora determinadas lutas surjam inicialmente em certos lugares e setores da sociedade.

Chegamos assim à conclusão de que o marxismo é expressão teórica do proletariado revolucionário, ou seja, como classe autodeterminada, mesmo que esta classe ainda não tenha realizado tal passagem. É por isso que afirmamos o marxismo como um pensamento extemporâneo, uma consciência antecipadora, que não reproduz o existente, o imediato, e nem cai no presentismo, pois expressa teoricamente a classe que traz em si o futuro. Por um lado, ele é uma teoria revolucionária, cuja finalidade é a revolução e a ruptura radical com todas as ideologias e formas de ilusões da sociedade capitalista, antecipando a consciência do futuro no presente e possibilitando a crítica desapiedada do existente. Por outro lado, ele é uma teoria da revolução proletária que analisa e compreende o processo no qual o proletariado realiza a transformação radical do conjunto das relações sociais.

Antes do fim da exposição, devemos ressaltar que o marxismo é uma expressão do movimento operário, mas não é sua única expressão cultural. A nosso ver, o marxismo é a única expressão teórica, o que não exclui outras formas culturais, como as representações cotidianas, doutrinas políticas, etc. O anarquismo revolucionário, por exemplo, é uma doutrina que também expressa o movimento operário. Outro elemento importante é que tratamos neste vídeo da discussão sobre o conteúdo, a essência do marxismo. O marxismo original, representado por Karl Marx e com limitações e ambiguidades, Friedrich Engels, teve desdobramentos e aprofundamentos nos seus diversos elementos e passou por mutações históricas no decorrer do desenvolvimento do capitalismo. Ao longo da história, a essência do marxismo autêntico manifestou-se de várias formas, como na tendência do comunismo de conselhos, no marxismo autogestionário, entre outros — o que seria assunto para outros vídeos. Dessa maneira, o marxismo autêntico é o pensamento insuperável de nossa época e ele exige ser atualizado, desenvolvido, enriquecido, sem nunca deixar de lado a sua essência crítica e revolucionária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 9ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

VIANA, Nildo. A Essência do Marxismo. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 01, Num. 02, jul./dez. 2014.

VIANA, Nildo. O Que é o Marxismo? Rio de Janeiro: Elo Editora, 2008.

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