O que é marxismo? (Parte I) — Origem e crítica das definições em Lênin e Kautsky.

Crítica Roedora dos Ratos
6 min readMay 23, 2021

Há pouco mais de um mês, surgiu a vontade de fazermos uma série de vídeos para o youtube e outros canais explicando a origem do marxismo. A ideia era dar vazão à uma produção de conteúdo própria, que desse ao mesmo tempo a oportunidade de desenvolvermos tanto a escrita quanto as ferramentas de edição e comunicação pela internet. O resultado final foi fruto da nossa parceria (IG: Marxismo Libertário) com o militante autogestionário, Felipe Andrade (Movaut-GO e membro do portal Crítica Desapiedada), quem se predispôs a redigir o texto, e você pode conferir na íntegra aqui: https://www.youtube.com/watch?v=pYSMEKMGVVM&t=7s.

Abaixo você encontra o texto-base que serviu de roteiro ao vídeo. Abraços!

ORIGEM DOS TERMOS MARXISTA E MARXISMO

É no período da Primeira Internacional que Bakunin e seus adeptos usarão, na luta contra Marx e o Conselho Geral, o termo “marxistas” que servirá para acusar Marx e seus partidários. Dessa maneira, o termo “marxista” adquire, em um primeiro momento, um tom polêmico e pejorativo em relação a Marx e seus adeptos. No momento do Congresso de Haia da AIT a etiqueta “marxista” é difundida, adquirindo significado distinto do que era atribuído por Bakunin. O termo marxista começa a designar a fração que permanecera fiel ao Conselho Geral, contrapondo-se às frações “aliancista” e “bakuninista”.

No final da década de 1870, surge outro termo que é “marxismo”. O termo “marxismo” é utilizado como adjetivo, não para indicar uma teoria, mas a corrente política dos supostos partidários das ideias de Marx, ou seja, a social-democracia alemã nascente e seu “apêndice” na França, formado pelos guesdistas. Dessa forma, tanto “marxismo” quanto “marxista” assumem duas conotações possíveis: a) São utilizadas em tom polêmico pelos adversários de Marx, sobretudo Bakunin e seus adeptos); b) Referem-se à determinada posição política até o final dos anos de 1870.

A partir dos anos 80 os termos “marxista” e “marxismo” entram no vocabulário socialista internacional. Após a dissolução da AIT, o termo social-democrata começa a substituir a palavra “comunismo”. O termo será propagado, apesar da resistência de Marx e Engels, e será utilizado como sinônimo de marxista. Dessa maneira, o termo “marxismo” começa a ser utilizado de forma positiva. Na França daquele período, o Partido Operário Francês é conhecido como “Partido operário marxista” e os militantes guesdistas se autodenominavam marxistas. Haupt (1979) assim demonstra que o “uso dos termos “marxista” e “marxismo” adquire então um sentido preciso no seio da social-democracia alemã. Ao invés de alcunhas pejorativas, tornam-se indicações positivas e penetram no vocabulário político com um novo sentido” (p. 357). A transformação semântica das palavras ocorre no contexto da transição da I para a II Internacional, formação dos partidos operários independentes, etc.

DEFINIÇÃO DE KAUTSKY

Karl Kautsky é quem assume a paternidade dos termos “marxista” e “marxismo” nos anos 1880. A partir de 1882, Kautsky começa a utilizar essas palavras de modo consciente, sistemático e com um significado ideológico preciso. É no contexto da publicação, em 1883, da revista “Neue Zeit” no interior do Partido Social-democrata alemão que Kautsky cuida da difusão do que ele compreendia por “marxismo”. Em panfleto intitulado “As Três Fontes do Marxismo”, Kautsky diz que o marxismo seria uma ciência da sociedade do ponto de vista proletário que sintetiza a contribuição de diversas áreas do pensamento:

“Foi assim que [Marx e Engels] criaram o socialismo científico moderno, pela fusão de tudo o que o pensamento inglês, o pensamento francês e o pensamento alemão tinham de grande e de fértil” (KAUTSKY, s/d, p. 44).

Em Kautsky, o marxismo é transformado em uma ciência social, tal como as ciências naturais da época, tendo como principal referência o pensamento de Darwin. A partir disso, Kautsky distingue a ciência proletária da ciência burguesa. O marxismo é a “ciência proletária”, uma ciência que deve possuir caráter científico, o que tinha por detrás o interesse de Kautsky de conseguir respeitabilidade e status em um contexto no qual o paradigma positivista era dominante. Assim, o pensamento de Marx foi transformado em uma lei natural sob a pena de Kautsky. De um lado, estava o movimento operário com suas reivindicações puramente econômicas e, por outro lado, existia o socialismo, sendo que ambos não possuíam natureza idêntica.

A definição de Kautsky foi a primeira vulgarização do marxismo, submetendo este a uma conotação cientificista e positivista, dentro dos interesses dos partidos social-democratas e das organizações políticas reformistas da época. Foi naquele período que surgiram as escolas “marxistas”, as doutrinas “marxistas”, que eram aderidas por aqueles que seriam “ortodoxos” ou “heterodoxos”. Kautsky e Bernstein foram os responsáveis por transformar o marxismo na “religião de Marx”, em um “sistema”, “doutrina” ou “ciência proletária”, o que foi seguido adiante por outros indivíduos, como Lênin.

DEFINIÇÃO DE LÊNIN

As teses de Kautsky sobreviveram durante certo tempo e o seu subproduto mais conhecido foi o leninismo. Longe de criticar o kautskismo, Lênin reteve teses centrais expostas por Kautsky sobre a definição do marxismo e apresentou suas ideias, repetindo os mesmos temas de seu mestre, em seu ensaio intitulado “As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo”. O marxismo, dizia Lênin, era um “sistema das ideias e da doutrina de Marx”. Ele acrescenta:

“A sua doutrina nasceu como continuação direta e imediata das doutrinas dos representantes mais eminentes da filosofia, da economia política e do socialismo. (…). É a sucessora legítima de tudo quanto a humanidade criou de melhor no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês.” (LENIN, 1980, p. 72).

Em Lênin, como também Kautsky, o marxismo é apresentado como uma síntese superior entre várias formas de saber complexo. Nessa concepção, a história do movimento operário e a história do movimento intelectual da época aparecem separadas, não existindo uma união entre movimento operário e socialismo, como dito nas palavras de Lênin e Kautsky.

Crítica: Na definição de Lênin falta a percepção da relação do marxismo com as “três fontes e as três partes constitutivas”, assim como falta a percepção das “três fontes” em Kautsky. Aliás, o que também se torna problemático nessas definições é a existência de uma separação entre a “história das ideias” e a “história real”. Portanto, o que é comum nas teses de Lênin e Kautsky é a separação da história real e a história do marxismo, onde é possível aos intelectuais burgueses produzir concepções científicas e as introduzir no proletariado. Outro problema dessas teses é a justaposição das teorias de Marx, o que permite, posteriormente, separações mecânicas como ocorre em Stálin, entre “materialismo dialético” e “materialismo histórico”.

Além disso, a concepção leninista do marxismo também confunde este com as ideias de Marx. É preciso entender quando as ideias de Marx se transformaram no marxismo. Para essa tarefa, Viana (2008) coloca que o marxismo, inicialmente, deve ser definido como um movimento político e cultural e, por sua vez, ele ultrapassa as ideias e a pessoa de Karl Marx. Assim, a obra de Marx é apenas o primeiro momento do marxismo, e não o único. As definições de Lênin e Kautsky devem ser descartadas, pois elas substituem as determinações sociais do pensamento por uma história autônoma e independente do marxismo. É a partir dessas observações apontadas por Nildo Viana em sua obra O que é marxismo? que buscaremos explicar o marxismo a partir do materialismo histórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROT, Jean. O “Renegado” Kautsky e seu discípulo Lênin. Marxismo e Autogestão. Ano 01, num. 01, jan./jun. 2014.

HAUPT, Georges. Marx e o Marxismo. In: HOBSBAWN, Eric (org.). História do marxismo I. O marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KAUTSKY, Karl. As Três Fontes do Marxismo. São Paulo: Editora Global, s/d.

LENIN, Vladimir. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo. 3ª ed. São Paulo: Editora Global, 1980.

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